quarta-feira, 27 de junho de 2012

Para melhorar a redação


O MESMO E OUTROS EQUÍVOCOS
O termo usado em avisos de elevador é exemplo de trocas feitas para evitar formas típicas da fala

Sírio Possenti
Professor do Depto. de Linguística da Unicamp

Somos uma sociedade oral. Não nos habituamos (ainda) a prestar atenção a informações ou avisos escritos. Muitas vezes, desprezamos placas que indicam a direção de uma estação do metrô ou informam que devemos retirar uma senha, em um banco ou em um posto de saúde, e perguntamos o que queremos saber aos transeuntes ou aos funcionários. Eles, mais ou menos gentis e irônicos, nos indicam as placas.
Essas, quando existem, muitas vezes são precárias. As que deveriam orientar visitantes nas cidades, por exemplo, são quase sempre inúteis: só são compreensíveis pelos moradores. Em Campinas, por exemplo, há placas nas ruas que indicam a direção da “rótula”. Ora, quem sabe o que é “rótula” e para onde se pode ir seguindo as ruas que a compõem? Só os moradores que acompanharam os debates sobre as mudanças no trânsito...
Não se trata contudo, de redação ruim. É uma questão pragmática: quais são os verdadeiros interlocutores das placas? São aqueles para os quais elas seriam claras na imaginação dos seus redatores. De fato, são os habitantes da cidade, donos de uma memória relativamente complexa em relação a ela, porque acompanharam as mudanças e a publicidade.
Por outro lado, se há muitas placas no mesmo espaço, talvez elas não sejam lidas. No caso do acesso aos elevadores, serão tanto mais lidas quanto maior for a demora do elevador e quanto menos ocupados com outras coisas estiverem os passageiros, por exemplo.
Enfim, observe que o texto da placa pode ser um problema, mas também uma solução: se for muito longo, pode não ser percebido como um aviso – avisos, em geral, são breves. Além disso, se a redação for obscura ou estranha, pode não ser compreendido. O veneno, porém, pode ser também o remédio: eventualmente, textos um pouco estranhos podem chamar a atenção, exigir leitura mais cuidadosa que dê motivo de perguntas como: “O que isso quer dizer?” ou “Será que é isso mesmo?”
Retomemos, então, a placa que é citada em “A genealogia do ‘mesmo’”, publicada originalmente em CartaCapital e reproduzida nas páginas anteriores: “Aviso aos passageiros: antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”. O texto destaca diversos aspectos referentes a ela, desde os motivos que levaram à apresentação do projeto de lei pelo então vereador Zé Índio (poupar vidas) até as questões gramaticais ou estilísticas debatidas.
Diante dela, o leitor pode pensar: o que quereria dizer “encontra-se parado neste andar”? E como definir “elevador”? A palavra designa apenas o veículo que sobe e desce ou o aparato completo? Questões nada simples! Enquanto o usuário faz essas perguntas, talvez o elevador chegue...

A redação
Em certo ponto do texto, Zé Índio dá uma interessante declaração: “Eu hoje poria ‘ele’ no lugar de ‘mesmo’, que é feio”. Leitores de colunas sobre a Língua Portuguesa depararam-se com algumas discussões sobre a placa (sem contar os que acessam a internet e os que ficaram sabendo dela em provas e aulas). A matéria menciona, sem dar maiores informações, até um projeto de pesquisa levado a cabo no interior de outro mais abrangente, sobre mudanças no português paulista, que levou em conta a redação de tal sinalização.
O foco dos debates foi a palavra “mesmo”, principal objeto das críticas. Pode-se dizer que se trata mesmo (!) de um uso estranho, pelo menos para ouvidos educados numa versão mais antiga da língua. No caso, o termo não está sozinho. Antes, faz parte de uma pequena lista de palavras convocadas a substituir outras que, por razões um pouco estranhas, passaram a ser evitadas: os pronomes “ele/ela”, o verbo “ter” e o pronome (ou conjunção) “que”.
Antigamente, eram comuns construções como: “Comprei o livro que o professor recomendou” e “Eu não tenho o livro que o professor recomendou, mas ele está à venda na livraria perto de casa”. Hoje, no lugar dessas construções, encontram-se as seguintes, que evitam as três formas mencionadas: “Comprei o livro o qual o professor recomendou”, “Eu não tenho o livro que o professor recomendou, mas o mesmo está à venda na livraria perto de casa”.
Qual é a razão dessas “mudanças”? A explicação parece ser uma avaliação segundo a qual tais formas são muito banais, talvez típicas da fala e, portanto, devem ser evitadas na escrita. Trata-se de uma generalização equivocada, consequência das críticas a essas formas quando ocorrem em outros contextos. Vejamos:
a) o emprego de “ter” é considerado um erro no lugar de “haver”. A escola ensina que se deve dizer “havia livros” e não “tinha livros” (também se combate “haviam”). A generalização equivocada acaba sendo: “Evite o emprego de ‘ter’”. E lá vem então o verbo “possuir”, até em casos como “eu ainda possuo minha avó”...
b) a escola ensina também que não se deve dizer “eu vi ele” ou “mandei ele sair”, e sim “eu o vi” ou “mandei-o sair”. A generalização acaba sendo “evite o uso de ‘ele’”. Uma das saídas tem sido empregar “o mesmo”, decisão que decorre também de outra regra discutível: “não repita nomes”. Uma construção como “antes de entrar no elevador, verifique se o elevador está parado...” também seria condenada por gregos e troianos.
Na verdade, considerado o português culto falado hoje no Brasil, não deveria haver nenhuma razão para condenar “ter/ele/que”. Mas a mentalidade dominante nas avaliações é arcaica, muito purista. Pior: os donos da língua generalizam mal. Basta avaliar as reações (a essa placa e a outras questões), que mostram uma mentalidade conservadora. Até parece que muitíssimos brasileiros são especialistas em norma culta e em gramática, tantos são os comentários desfavoráveis a detalhes que não lhes soam bem. Os erros de ortografia são os que merecem maior destaque. Parece que somos um país de revisores. Lembre-se do rumoroso caso Sasha, filha de Xuxa, que escreveu “sena” por “cena” no Twitter da mãe, levando milhares de pessoas a comentarem o “problema”. Observe também o quanto o País ri dos erros de grafia que ocorrem em placas. Seríamos mais alfabetizados do que parecemos, ou esses fatos chamam a atenção por serem “fáceis”?

Reescrita e discussão de alternativas
A placa e, em especial, a conhecida redação, na qual sobressai a palavra “mesmo”, são uma boa ocasião para a análise do texto em questão, para uma pesquisa sobre os usos e sentidos de “mesmo” e, mais geralmente, para um estudo de placas que se tornaram um objeto de observação – e de riso – nacional. É uma boa ocasião para esclarecer questões como a adequação de um texto e de seu estilo. Ou seja, é uma excelente oportunidade para realizar, na escola, uma das práticas mais eficazes entre todas as conhecidas para obter melhores resultados na escrita: prática de reescrita e da discussão sobre as alternativas.
A partir do conhecido aviso, pode-se comparar sua redação à proposta por Zé Índio no final da matéria: “ele” no lugar de “o mesmo”. Mas há outras hipóteses. Minha sugestão seria: “Antes de entrar, verifique se o elevador está neste andar”. Eu excluiria a expressão “aviso aos passageiros” por diversas razões: a) dúvida sobre a precisão de “passageiros”: nesse caso, prefiro “usuários”; b) por ser óbvio que uma placa que está perto da entrada do elevador quer ser lida pelos cidadãos que aí ficam parados por algum tempo; c) quanto mais breve for um aviso, melhor.
A segunda mudança seria a eliminação de “elevador” na primeira parte do aviso. Não há hipótese de alguém interpretar o aviso como sendo para os que vão entrar nos apartamentos ou salas do prédio. Mas, se houver alguma dúvida sobre o complemento locativo de “entrar”, ela se resolve assim que for lida a palavra “elevador” na segunda parte do aviso.
A terceira mudança seria a eliminação de “parado”. “Está neste andar” é um aviso suficientemente claro. Todos os textos são lidos considerando-se seu contexto, que supre as eventuais imprecisões. “Proibido fumar” é sempre lido como “proibido fumar nesta sala”, sem que se escreva “nesta sala”.
(Texto publicado na Revista CartaNaEscola, p. 16-19.)

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