terça-feira, 5 de março de 2013

Texto para discussão

O texto a seguir foi publicado na revista Metáfora e traz uma interessante aproximação entre uma forma narrativa emergente (os videogames) e a forma tradicional (literatura). 

O QUE OS VIDEOGAMES PODEM APRENDER COM A LITERATURA?

Embora a dinâmica interna dos jogos eletrônicos esteja em constante evolução, talvez ainda lhes faltem motivações mais profundas como as da arte literária

Uma parte importante da literatura consiste na arte da narrativa, a arte de contar histórias; um parentesco estrutural que ela tem com o cinema, o teatro, as histórias em quadrinhos, etc. Neste "etc." podem ser incluídos agora os videogames, universos narrativos em que há elementos comuns à literatura de ficção: ambientes, pessoas, enredo, peripécias, encadeamento de causa e efeito entre fatos sucedidos aos personagens. Onde quer que exista uma semelhança tão básica existe a possibilidade de cada uma dessas atividades dar alguma contribuição à outra.

Os videogames são em 2012 o que o cinema era em 1912: uma nova maneira de contar histórias, resultante da combinação de novas tecnologias, que gerou uma indústria gigantesca voltada para um público considerado imaturo e ávido por sensacionalismo. Em 1912 o cinema ainda não tinha um Chaplin, um Fritz Lang, um Griffith, um Eisenstein: artistas que não apenas revolucionaram a maneira de narrar como também trouxeram uma inesperada densidade humana, psicológica e social àquele espetáculo até então meio inconsequente. O cinema era uma diversão de quermesse, e aos olhos dos intelectuais da época seria assim eternamente.

Proliferação
 É possível que os "chaplins" do videogame já existam, difíceis de enxergar numa proliferação espantosa de indústrias, empresas, designers, plataformas, gêneros e subgêneros. Uma expansão que já faz a indústria dos games (e aqui estou incluindo todas as diferentes plataformas, com tipos tão diferentes quanto os games de console e os games de computador) rivalizar com a do cinema. Um jogo ansiosamente aguardado, de uma série de sucesso, como Call of Duty: Modern Warfare 3, vendeu o equivalente a US$ 400 milhões em seu primeiro dia de lançamento.

Os games têm recorrido a gêneros populares como o terror, o policial, a ficção científica, etc., mas sempre o fazem via cinema, via adaptação para a imagem. O que não impediu a criação, em 2009, de um game baseado na Divina Comédia, uma produção da Visceral Games, distribuída pela Electronic Arts, intitulada Dante's inferno. É um jogo de ação e aventura onde o poeta florentino é transformado num cavaleiro templário, e vai ao Inferno resgatar sua dama - mas cobrindo na porrada todos os monstros com que se defronta nas regiões abissais. Os mais puristas ficarão horrorizados, mas este é apenas um indício, entre muitos, de que a indústria de games se alimenta de: 1) narrativas arquetípicas, com ressonância no inconsciente coletivo; 2) narrativas situadas num passado mítico e remoto, e que tanto possa se alimentar à vontade das mitologias já existentes quanto inventar outras que lhe convenham; 3) narrativas onde exista algum tipo de quest, demanda, busca, aventura, missão - uma série de etapas a serem cumpridas até a última e mais importante delas.

Jogos são uma experiência imersiva, numa atividade continuada ao longo do tempo. Zerar um jogo leva muitos dias, mesmo jogando várias horas por dia. Neste sentido, um game se parece mais com um romance do que com um conto que se lê em uma ou duas horas. A experiência do game precisa do que chamamos "um universo", um ambiente suficientemente complexo para ter sua própria história, geografia, população, cultura, leis e costumes, flora, fauna, e tudo o mais. É um tipo de exigência que o game partilha com o romance. E onde os dois podem se beneficiar mutuamente. Gêneros não realistas como a fantasia heroica e a ficção científica são especialistas em criar universos assim, mas o romance histórico (incluindo a lenda, a epopeia historica) parece ser um caminho óbvio e inevitável para futuros games.

O livro Extra lives de Tom Bissell (2010) é uma crítica aos games feita por um gamemaníaco suficientemente distanciado para tocar em algumas questões básicas. Diz ele: "Games são produtos de entretenimento corporativo, criados por dúzias de pessoas, com uma grande expectativa de ganhar dinheiro. Eles têm muito mais inteligência formal ou estilística do que são capazes de utilizar; e não têm nem um traço de inteligência temática, emocional ou moral".

Inquietação
Quem diz isto é um fã confessos dos joguinhos; Bissell inicia seu livro contando com bom humor como perdeu a transmissão da vitória de Barack Obama na eleição para presidente dos EUA porque estava mergulhado em Fallout 3, que tinha chegado ao mercado poucos dias antes.

Uma inquietação difusa mas onipresente, no meio dos criadores de games, diz respeito a elementos de que a crítica e o público volta e meia estão se queixando, e que eu consideraria na fórmula: "Falta literatura". Falta (dizem eles) originalidade e espontaneidade nos diálogos. Falta profundidade psicológica nos personagens, tornando suas motivações mais complexas e suas ações menos previsíveis. Tanto a literatura quanto um game precisam dessa oscilação em que é impossível prever o que um personagem fará, mas depois que ele o faz a ação é plausível.

Bissell justifica essas carências com uma razão principal: "Um número desproporcional de designers de games hoje em atividade vem de um background de sistemas, programação ou engenharia, o que contribuiu para formar suas personalidades e interesses. Uma consequência disso é que os designers imaginam os games de dentro para fora: Que variável posso inserir no sistema para produzir um efeito interessante?". A dinâmica interna dos jogos está sendo criada com competência; o que lhes falta talvez seja justamente o detalhamento literário, as motivações profundas.
TAVARES, Bráulio. In: Metáfora, n. 2, 2012, p. 18-9.